A vida é uma lista do que perdemos
Do que nos deixa, e do que deixamos
A perda é um processo indissociável da vida.
Cada encontro está carregado de perdas.
Eu cresci querendo conquistar o mundo, e lutei muito por isso.
Conquistei tudo que sonhei, mas no caminho me perdi.
Quando me dei conta que eu tinha tudo o que queria, me vi sem sonhos pra sonhar, e sem objetivos a seguir, e me dei conta de que não sabia viver assim.
O que me movia era o processo e não a conquista, nesse momento me vi sem mim.
E sem mim, fui perdendo, aos poucos, tudo o que construí, as pessoas que conquistei e o tempo foi levando alguns outros que me eram insubstituíveis.
Eu precisava de mim, de me buscar, me encontrar, então deixei tudo pra trás e saí por ai.
Sem rumo e sem direção eu ia onde o vento me levava, comendo o que tinha a disposição e dormindo onde batia o cansaço.
As perdas inesperadas e insubstituíveis me deixaram à deriva abalaram uma construção que eu julgava sólida, me desmoronou.
Eu precisava me reconstruir
Lembrei que quando criança nas viagens de férias, minha irmã e eu nos refugiávamos em uma cabana, perto do lago, que nosso pai construiu pra nós, perto da nossa casa de campo.
Há muitos anos não voltava lá, desde que comecei a preferir a mim, a viajar com os amigos e não me importar com a família. Fazia tanto tempo...
Perdi meus pais, minha irmã foi morar fora e eu nunca mais voltei lá.
Resolvi ir até lá. A casa estava envelhecida, desgastada, com paredes descascadas e muros ruindo.
Fui até a cabana e tudo estava um caos, praticamente não existia mais, perdeu o brilho, a beleza e o aconchego.
Pouco carregamos conosco além dos anos e fui aprendendo a vida nas perdas.
Em meio a destruição, eu me vi: quebrado como as portas, rachado como as paredes, sujo como o chão.
Me dei conta que perdi tudo o que nunca tive, e na verdade o que eu sempre tive estava ali, eu, a cabana, a casa e a infância passada.
Esperei passar o vento e a tempestade ceder
A reconstrução se inicia somente após o vento e a tempestade irem embora
Comecei a reconstruir, a reerguer os pilares da vida e da edificação
Enxergar a própria ruína e os escombros da alma
Enxergar-se é o início de todo processo de reconstrução
Eu não podia mais ficar escondido nos escombros de mim mesmo.
Enquanto subia as paredes, eu reatava meus extremos e voltava pra mim
Enquanto edificava o teto, meus alicerces se fortaleciam.
Ao mesmo tempo que as pedras que se encaixam, eu me quebrava e me moldava.
Aqui dentro estava uma bagunça, entulhos de uma vida inteira.
Enquanto e reforma decorria eu deixava morrer o que a morte já havia sepultado, e deixava viver o que dela ressuscitou.
Deixava partir, o que não quis mais ficar e deixava ficar o que me era importante.
Plantei novas flores no jardim, podei as folhas mortas, reguei o solo da vida, para que as novas sementes crescessem em terra boa.
Pintei a parte interna, mas antes tive que descasca-la, reparar as brechas, lixar as feridas e passar uma boa tinta para que o interior não embolore no futuro.
A pintura externa eu já estava acostumado, já colori muito o exterior para não mostrar o que estava sem cor por dentro.
Mas desta vez foi diferente, ao pintar as paredes, eu coloria a alma.
Os quadros colocados na parede se destinavam a contar histórias e a criar memórias.
Os móveis arrumados em seus lugares preenchiam os vazios do peito, os espaços em branco, os cantos desabitados que havia em mim.
A casa foi reconstruída e com ela o meu eu, enquanto ela se erguia eu reconstruía o que em mim estava desmoronado.
As cicatrizes dessa história se convertia no aprendizado da reconstrução.
Enfim era hora da cabana, tantas memórias...
As madeiras escolhidas com carinho tinham o cheiro da infância
Cada prego na madeira dava sentido à construção
Enquanto envernizava pensava em como é difícil tirar todo o verniz com que fomos feitos. São camadas e camadas de regras, verdades, mentiras e convenções - impregnados por anos a fio, moldando-nos, sufocando-nos.
Cabana arrumada reconheci nela o meu lugar, abri a janela e deixei o sol entrar.
O sol iluminou tudo por dentro, trouxe vida nova, leve e em paz.
A reforma terminou, o caminho exigiu aprendizado, muitas vezes, dolorido.
A casa, a cabana e eu...
Nossos pedaços, nossos interiores estavam reparados.
Muitos fragmentos perdidos foram muitos, mas estávamos reconstruídos
Somente quando a casa interior foi arrumada é que encontrei a forma ideal para o exterior.
Eu me tornei casa arrumada
Eu quis mudar o mundo, quis conquistar e ser reconhecido.
Hoje eu quero bem pouco, só o que possa levar comigo.
Escrevo da cabana reformada, como um menino que nunca saiu dali.