terça-feira, 27 de junho de 2023

A CASA E A CABANA

 


A vida é uma lista do que perdemos

Do que nos deixa, e do que deixamos

A perda é um processo indissociável da vida.

Cada encontro está carregado de perdas.


Eu cresci querendo conquistar o mundo, e lutei muito por isso.

Conquistei tudo  que sonhei, mas no caminho me perdi.

Quando me dei conta que eu tinha tudo o que queria, me vi sem sonhos pra sonhar, e sem objetivos a seguir, e me dei conta de que não sabia viver assim. 

O que me movia era o processo e não a conquista, nesse momento me vi sem mim. 


E sem mim, fui perdendo, aos poucos, tudo o que construí, as pessoas que conquistei e o tempo foi levando alguns outros que me eram insubstituíveis.

Eu precisava de mim, de me buscar, me encontrar, então deixei tudo pra trás e saí por ai.


Sem rumo e sem direção eu ia onde o vento me levava, comendo o que tinha a disposição e dormindo onde batia o cansaço.

As perdas inesperadas e insubstituíveis me deixaram à deriva abalaram uma construção que eu julgava sólida, me desmoronou. 

Eu precisava me reconstruir


Lembrei que quando criança nas viagens de férias, minha irmã e eu nos refugiávamos em uma cabana, perto do lago, que nosso pai construiu pra nós, perto da nossa casa de campo.

Há muitos anos não voltava lá, desde que comecei a preferir a mim, a viajar com os amigos e não me importar com a família. Fazia tanto tempo...

Perdi meus pais, minha irmã foi morar fora e eu nunca mais voltei lá.


Resolvi ir até lá. A casa estava envelhecida, desgastada, com paredes descascadas e muros ruindo.

Fui até a cabana e tudo estava um caos, praticamente não existia mais, perdeu o brilho, a beleza e o aconchego.

Pouco carregamos conosco além dos anos e fui aprendendo a vida nas perdas.


Em meio a destruição, eu me vi: quebrado como as portas, rachado como as paredes, sujo como o chão.

Me dei conta que perdi tudo o que nunca tive, e na verdade o que eu sempre tive estava ali, eu, a cabana, a casa e a infância passada.


Esperei passar o vento e a tempestade ceder

A reconstrução se inicia somente após o vento e a tempestade irem embora

Comecei a reconstruir, a reerguer os pilares da vida e da edificação

Enxergar a própria ruína e os escombros da alma

Enxergar-se é o início de todo processo de reconstrução

Eu não podia mais ficar escondido nos escombros de mim mesmo.


Enquanto subia as paredes, eu reatava meus extremos e voltava pra mim

Enquanto edificava o teto, meus alicerces se fortaleciam.

Ao mesmo tempo que as pedras que se encaixam, eu me quebrava e me moldava. 

Aqui dentro estava uma bagunça, entulhos de uma vida inteira.

Enquanto e reforma decorria eu deixava morrer o que a morte já havia sepultado,  e deixava viver o que dela ressuscitou.

Deixava partir, o que não quis mais ficar e deixava ficar o que me era importante.


Plantei novas flores no jardim, podei as folhas mortas, reguei o solo da vida, para que as novas sementes crescessem em terra boa.


Pintei a parte interna, mas antes tive que descasca-la, reparar as brechas, lixar as feridas e passar uma boa tinta para que o interior não embolore no futuro.

A pintura externa eu já estava acostumado, já colori muito o exterior para não mostrar o que estava sem cor por dentro.

Mas desta vez foi diferente, ao pintar as paredes, eu coloria a alma.


Os quadros colocados na parede se destinavam a contar histórias e a criar memórias.

Os móveis arrumados em seus lugares preenchiam os vazios do peito, os espaços em branco, os cantos desabitados que havia em mim.


A casa foi reconstruída e com ela o meu eu, enquanto ela se erguia eu reconstruía o que em mim estava desmoronado.

As cicatrizes dessa história se convertia no aprendizado da reconstrução.


Enfim era hora da cabana, tantas memórias...

As madeiras escolhidas com carinho tinham o cheiro da infância

Cada prego na madeira dava sentido à construção

Enquanto envernizava pensava em como é difícil tirar todo o verniz com que fomos feitos. São camadas e camadas de regras, verdades, mentiras e convenções - impregnados por anos a fio, moldando-nos, sufocando-nos.

Cabana arrumada reconheci nela o meu lugar, abri a janela e deixei o sol entrar.

O sol iluminou tudo por dentro, trouxe vida nova, leve e em paz.


A reforma terminou, o caminho exigiu aprendizado, muitas vezes, dolorido.

A casa, a cabana e eu... 

Nossos pedaços, nossos interiores estavam reparados.

Muitos fragmentos perdidos foram muitos, mas estávamos reconstruídos

Somente quando a casa interior foi arrumada é que encontrei a forma ideal para o exterior.


Eu me tornei casa arrumada

Eu quis mudar o mundo, quis conquistar e ser reconhecido. 

Hoje eu quero bem pouco, só o que possa levar comigo. 

Escrevo da cabana reformada, como um menino que nunca saiu dali.




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