segunda-feira, 11 de agosto de 2025

HÁ UM INVERNO LÁ FORA, HÁ UM INVERNO EM NÓS

 

Foto: Cristiano Xavier/OneLapse


Lá fora o inverno se estende como um lençol cinza sobre a cidade. 

O vento caminha apressado pelas ruas desertas, sussurrando segredos antigos nas frestas das janelas. 

As árvores nuas erguem os braços secos ao céu, como quem suplica ao sol um raio de calor perdido. 

A chuva fina borda o ar, e a neblina faz do mundo um cenário de sonho. 

 

Há um silêncio frio que parece desacelerar o tempo, como se o próprio relógio do universo se curvasse ao peso da estação.

Mas aqui dentro, as paredes são o abraço invisível que impede o frio de entrar. 

O aroma quente do café recém passado espalha-se pela casa, um convite sutil ao aconchego. 

Entre as mãos, a xícara é um pequeno sol particular, aquecendo os dedos e o coração. 

 

E quando os olhos se perdem nas páginas de um livro, o inverno parece se dissolver: as palavras são cobertores que nos envolvem, histórias que nos levam para longe do frio, para terras onde o vento não alcança. 

 

O corpo se enrosca no cobertor como quem encontra um porto seguro, e a alma, essa parte que o inverno lá fora não alcança, acende suas pequenas fogueiras de lembranças e esperanças.

O inverno lá fora convida ao recolhimento, mas é aqui dentro que o calor verdadeiro se revela: o calor da casa, do café quente, das páginas que nos embalam, das palavras que aquecem, do olhar que conforta, da chama quieta daquilo que nos habita. 

 

Há um inverno no mundo e há um inverno em nós. 

O de lá, impiedoso, açoita as ruas e faz murchar as flores; 

O de cá, às vezes mais frio, pede que sejamos o abrigo uns dos outros. 

E enquanto lá fora o gelo insiste em dominar, aqui dentro resistimos: somos lareira, somos lume, somos essa promessa de primavera guardada no peito, esperando apenas o momento certo para florescer.




terça-feira, 29 de abril de 2025

O TEMPO, ARTESÃO DAS AUSÊNCIAS

 



Outro dia me peguei pensando no tempo — não no tempo do relógio ou do céu nublado, mas nesse tempo que passa e leva tudo com ele. Não é de uma vez, claro. O tempo não tem pressa. Ele vai tirando aos poucos.

O tempo é um mestre silencioso, um ourives de horas que trabalha com as mãos vazias. Ele não traz, apenas leva. Não preenche, só esvazia. E no seu ofício paciente, torna-se especialista em criar ausências.  O tempo, na verdade, é um escultor de vazios.

 

O tempo é mestre nisso: em afastar sem alarde. Não grita, não rompe. Apenas afasta. Vai apagando os rastros, como quem limpa pegadas da areia. E a gente segue, achando que está tudo igual, até perceber que algo falta — uma presença, uma palavra, uma rotina que fazia sentido.

No começo, é só um café que não acontece, uma conversa adiada, uma ligação esquecida. Depois, a cadeira permanece vazia mais vezes do que deveria. A risada que era trilha sonora vira eco. O perfume se mistura ao ar até se perder. O tempo não precisa correr, ele só espera. E no silêncio das horas, ele retira, com mãos leves, tudo aquilo que parecia imutável.

Ele desfia os dias como um tear desmanchando tecidos, transformando o que era tangível em sombra, o que era cheio em espaço. 

 

O tempo é exímio nesse ofício: não deixa rastros visíveis. Só uma sensação difusa de que algo falta, que algo ficou pra trás, que algo era e não é mais. 

 

O tempo não apaga; ele esculpe a ausência, deixando-a tão nítida que, às vezes, é possível sentir o contorno do que já não está.  

 

Há quem diga que o tempo cura, mas penso que ele apenas faz com que a dor, antes aguda, torne-se uma coisa surda, um eco de si mesma. E mesmo quando julgamos ter esquecido, lá está ele, o tempo, soprando sobre a poeira das memórias, revelando que a ausência nunca foi vazio—apenas um molde do que um dia nos moldou.  

 

Restamos nós: seres feitos de buracos, de silêncios, de horas que já não nos pertencem, de pedaços que vivemos e partes que se foram. E o tempo, impassível, continua seu trabalho—especialista em transformar o que era em saudade.

 

Mas se ele não cura, ele ensina — às vezes com delicadeza, às vezes com brutalidade — que tudo é provisório. E que algumas presenças, mesmo quando viram ausência, continuam morando em algum lugar da gente.


segunda-feira, 31 de março de 2025

O OUTONO É UM PINTOR QUE NÃO TEM MEDO DO VAZIO

 


Há uma árvore no fim da rua que, que no outono, veste-se de fogo. 

Suas folhas não caem — dançam. 

Espalham-se em rodopios dourados, como se o vento as ensinasse a arte de deixar ir. 

O outono é assim: um pintor que não tem medo do vazio. 

 

O outono colore o mundo de âmbar e carmim, mas sussurra, em cada tonalidade, que a beleza está também no desapego. As copas, outrora cheias, aprendem a se revelar em nervuras e troncos retorcidos. Há uma verdade nos galhos nus: só perdendo o que se carrega é possível enxergar o próprio esqueleto, a estrutura que sustenta a vida mesmo quando a luz se vai.

 

A estação chega com passos de veludo, trazendo tardes curtas e céus de chumbo. 

O ar fica frio o suficiente para que cada respiro lembre: tudo é passageiro. 

As folhas secas, pisoteadas na calçada, estalam como memórias frágeis. 

Algumas são levadas pelos riachos formados pela chuva; outras se acumulam em cantos, esperando virar terra. 

 

O outono não é um fim, mas um ritual de entrega. 

A árvore não chora suas folhas — sabe que, para voltar a vestir-se de verde, precisa primeiro ficar nua. 

Precisa confiar no silêncio do inverno e na promessa sutil de raízes que trabalham no escuro.

Assim é a vida — uma colheita de momentos que precisam ser liberados. 

 

Há dores que pesam como maçãs maduras nos galhos: é preciso deixá-las cair para que não apodreçam em nossas mãos.

 Há amores que se despedem em tons de laranja, leves e breves, como a luz oblíqua que doura os campos ao entardecer. 

Aprendemos, com o tempo, que segurar demais sufoca. 

Que a plenitude está tanto no que se tem quanto no que se ousa soltar.

 

Mas o outono também é festa. É a uva que explode em doce nos vinhedos, o trigal que se inclina após anos de crescimento, a última dança dos pássaros antes da migração. 

Ele nos lembra que há beleza na maturidade, naquilo que, após florescer, se transforma em fruto. 

Mesmo o que parece morte é apenas mudança de estado: a folha que vira adubo, a semente que dorme sob a geada, o coração que, após partir-se, descobre novas formas de amar.

 

Quando o primeiro vento gelado cortar o ar, observe. 

Há sabedoria na árvore que não se envergonha de seus galhos descarnados. 

Há coragem na terra que aceita ser coberta pelo manto do desfalque, sabendo que, sob a superfície, algo germina. 

 

O outono não é nostalgia — é fé disfarçada de renúncia. 

E a vida, em sua essência, não pede que sejamos eternamente verdes. Apenas que, como as folhas, saibamos brilhar intensamente antes da queda... e confiar que, após o último suspiro dourado, virá o tempo de brotar de novo.

quarta-feira, 19 de março de 2025

O PASSADO TEM PÉS SILENCIOSOS E ANDA DESCALÇO SOBRE O TEMPO

 


O passado tem pés silenciosos.

Anda descalço sobre o tempo e, quando menos se espera, está de volta.

Ele bate na porta sem aviso, veste o perfume de antigas lembranças e se senta ao nosso lado como um velho amigo que nunca foi embora de verdade.

 

O passado, como um fantasma gentil, nos visita para nos lembrar de quem fomos, e do onde vivemos.

Às vezes, traz consigo dores que julgávamos enterradas, sussurrando ao ouvido que certos cortes nunca fecham por completo.

 

Mas a vida, essa grande senhora de ciclos, ensina que nem toda dor dura para sempre. 

Ela sabe que a chuva, mesmo quando cai pesada, lavando as ruas e afogando os olhos, cedo ou tarde se cansa. E passa.

O céu, outrora fechado e carregado de trovões, se abre devagar, como um coração aprendendo a perdoar.

O vento leva embora o peso das nuvens, e o sol se atreve a nascer de novo.

 

As dores da vida também seguem essa lógica: doem como tempestades, arrastam tudo em seu caminho, fazem parecer que o mundo inteiro é feito de lama e frio. Mas um dia, sem que se perceba exatamente quando, aquela ferida que ardia já não dói tanto.

O passado pode até voltar, mas nunca com a mesma força. E a chuva sempre passa, deixando no ar o cheiro fresco de um novo começo.

 

A vida, em sua infinita sabedoria, nos ensina que a dor é parte da jornada, mas que a alegria sempre encontra um caminho para nos alcançar.

Assim como a chuva que cessa, a dor se dissipa, revelando a beleza que sempre esteve presente, mesmo nos dias mais sombrios.




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