terça-feira, 29 de abril de 2025

O TEMPO, ARTESÃO DAS AUSÊNCIAS

 



Outro dia me peguei pensando no tempo — não no tempo do relógio ou do céu nublado, mas nesse tempo que passa e leva tudo com ele. Não é de uma vez, claro. O tempo não tem pressa. Ele vai tirando aos poucos.

O tempo é um mestre silencioso, um ourives de horas que trabalha com as mãos vazias. Ele não traz, apenas leva. Não preenche, só esvazia. E no seu ofício paciente, torna-se especialista em criar ausências.  O tempo, na verdade, é um escultor de vazios.

 

O tempo é mestre nisso: em afastar sem alarde. Não grita, não rompe. Apenas afasta. Vai apagando os rastros, como quem limpa pegadas da areia. E a gente segue, achando que está tudo igual, até perceber que algo falta — uma presença, uma palavra, uma rotina que fazia sentido.

No começo, é só um café que não acontece, uma conversa adiada, uma ligação esquecida. Depois, a cadeira permanece vazia mais vezes do que deveria. A risada que era trilha sonora vira eco. O perfume se mistura ao ar até se perder. O tempo não precisa correr, ele só espera. E no silêncio das horas, ele retira, com mãos leves, tudo aquilo que parecia imutável.

Ele desfia os dias como um tear desmanchando tecidos, transformando o que era tangível em sombra, o que era cheio em espaço. 

 

O tempo é exímio nesse ofício: não deixa rastros visíveis. Só uma sensação difusa de que algo falta, que algo ficou pra trás, que algo era e não é mais. 

 

O tempo não apaga; ele esculpe a ausência, deixando-a tão nítida que, às vezes, é possível sentir o contorno do que já não está.  

 

Há quem diga que o tempo cura, mas penso que ele apenas faz com que a dor, antes aguda, torne-se uma coisa surda, um eco de si mesma. E mesmo quando julgamos ter esquecido, lá está ele, o tempo, soprando sobre a poeira das memórias, revelando que a ausência nunca foi vazio—apenas um molde do que um dia nos moldou.  

 

Restamos nós: seres feitos de buracos, de silêncios, de horas que já não nos pertencem, de pedaços que vivemos e partes que se foram. E o tempo, impassível, continua seu trabalho—especialista em transformar o que era em saudade.

 

Mas se ele não cura, ele ensina — às vezes com delicadeza, às vezes com brutalidade — que tudo é provisório. E que algumas presenças, mesmo quando viram ausência, continuam morando em algum lugar da gente.


segunda-feira, 31 de março de 2025

O OUTONO É UM PINTOR QUE NÃO TEM MEDO DO VAZIO

 


Há uma árvore no fim da rua que, que no outono, veste-se de fogo. 

Suas folhas não caem — dançam. 

Espalham-se em rodopios dourados, como se o vento as ensinasse a arte de deixar ir. 

O outono é assim: um pintor que não tem medo do vazio. 

 

O outono colore o mundo de âmbar e carmim, mas sussurra, em cada tonalidade, que a beleza está também no desapego. As copas, outrora cheias, aprendem a se revelar em nervuras e troncos retorcidos. Há uma verdade nos galhos nus: só perdendo o que se carrega é possível enxergar o próprio esqueleto, a estrutura que sustenta a vida mesmo quando a luz se vai.

 

A estação chega com passos de veludo, trazendo tardes curtas e céus de chumbo. 

O ar fica frio o suficiente para que cada respiro lembre: tudo é passageiro. 

As folhas secas, pisoteadas na calçada, estalam como memórias frágeis. 

Algumas são levadas pelos riachos formados pela chuva; outras se acumulam em cantos, esperando virar terra. 

 

O outono não é um fim, mas um ritual de entrega. 

A árvore não chora suas folhas — sabe que, para voltar a vestir-se de verde, precisa primeiro ficar nua. 

Precisa confiar no silêncio do inverno e na promessa sutil de raízes que trabalham no escuro.

Assim é a vida — uma colheita de momentos que precisam ser liberados. 

 

Há dores que pesam como maçãs maduras nos galhos: é preciso deixá-las cair para que não apodreçam em nossas mãos.

 Há amores que se despedem em tons de laranja, leves e breves, como a luz oblíqua que doura os campos ao entardecer. 

Aprendemos, com o tempo, que segurar demais sufoca. 

Que a plenitude está tanto no que se tem quanto no que se ousa soltar.

 

Mas o outono também é festa. É a uva que explode em doce nos vinhedos, o trigal que se inclina após anos de crescimento, a última dança dos pássaros antes da migração. 

Ele nos lembra que há beleza na maturidade, naquilo que, após florescer, se transforma em fruto. 

Mesmo o que parece morte é apenas mudança de estado: a folha que vira adubo, a semente que dorme sob a geada, o coração que, após partir-se, descobre novas formas de amar.

 

Quando o primeiro vento gelado cortar o ar, observe. 

Há sabedoria na árvore que não se envergonha de seus galhos descarnados. 

Há coragem na terra que aceita ser coberta pelo manto do desfalque, sabendo que, sob a superfície, algo germina. 

 

O outono não é nostalgia — é fé disfarçada de renúncia. 

E a vida, em sua essência, não pede que sejamos eternamente verdes. Apenas que, como as folhas, saibamos brilhar intensamente antes da queda... e confiar que, após o último suspiro dourado, virá o tempo de brotar de novo.

quarta-feira, 19 de março de 2025

O PASSADO TEM PÉS SILENCIOSOS E ANDA DESCALÇO SOBRE O TEMPO

 


O passado tem pés silenciosos.

Anda descalço sobre o tempo e, quando menos se espera, está de volta.

Ele bate na porta sem aviso, veste o perfume de antigas lembranças e se senta ao nosso lado como um velho amigo que nunca foi embora de verdade.

 

O passado, como um fantasma gentil, nos visita para nos lembrar de quem fomos, e do onde vivemos.

Às vezes, traz consigo dores que julgávamos enterradas, sussurrando ao ouvido que certos cortes nunca fecham por completo.

 

Mas a vida, essa grande senhora de ciclos, ensina que nem toda dor dura para sempre. 

Ela sabe que a chuva, mesmo quando cai pesada, lavando as ruas e afogando os olhos, cedo ou tarde se cansa. E passa.

O céu, outrora fechado e carregado de trovões, se abre devagar, como um coração aprendendo a perdoar.

O vento leva embora o peso das nuvens, e o sol se atreve a nascer de novo.

 

As dores da vida também seguem essa lógica: doem como tempestades, arrastam tudo em seu caminho, fazem parecer que o mundo inteiro é feito de lama e frio. Mas um dia, sem que se perceba exatamente quando, aquela ferida que ardia já não dói tanto.

O passado pode até voltar, mas nunca com a mesma força. E a chuva sempre passa, deixando no ar o cheiro fresco de um novo começo.

 

A vida, em sua infinita sabedoria, nos ensina que a dor é parte da jornada, mas que a alegria sempre encontra um caminho para nos alcançar.

Assim como a chuva que cessa, a dor se dissipa, revelando a beleza que sempre esteve presente, mesmo nos dias mais sombrios.




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